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O direito a ser criança e o direito a ser bebê - manifesto da REDE-BEBÊ em defesa da infância como um tempo de estruturação

Outubro de 2025


No Dia das Crianças, a REDE-BEBÊ* dirige-se à sociedade e especialmente aos profissionais de saúde, educação, assistência, gestão e política, bem como aos familiares, para juntos defendermos a infância como um tempo de estruturação no qual as crianças tenham direito a ser crianças e bebês a ser bebês.

Para tanto, é preciso fazer objeção à precipitação de diagnósticos psicopatológicos que têm fixado apressadamente os sofrimentos dentro de classificações dadas como permanentes ou imanentes, desconsiderando a mobilidade e a abertura a inscrições próprias da infância.

Sim, é preciso cuidar das dificuldades que podem surgir ao longo do desenvolvimento infantil, não só pela produção do infante, mas também por uma escuta que leve a sério as preocupações daqueles que cuidam de um bebê ou pequena criança, porque um conflito não escutado vira um problema, um problema não atravessado vira um sintoma, e um sintoma psíquico não elaborado repercute em diferentes aspectos do desenvolvimento.

Quando, em lugar de conhecer e favorecer a estruturação, se escrutina a mais tenra infância com instrumentos focados na busca de marcadores psicopatológicos, se induz a fixação de comportamentos que poderiam deslizar se articulados a um contexto de desenvolvimento, já que o sentido do que uma pequena criança faz não se estabelece sozinho, e sim enlaçado com o lugar que o outro social, cultural, educacional, terapêutico e familiar lhe dá.

Por isso, é imprescindível que os profissionais que acompanham regularmente a infância – na saúde primária, educação infantil e assistência – tenham acesso à formação transdisciplinar, desde a qual possam conhecer não só os tempos da maturação orgânica, mas também os passos lógicos da estruturação psíquica que incidem no desenvolvimento, para assim intervir em prol da saúde infantil e não em prol da captura da infância em classificações patologizantes.

Não nascemos prontos. A infância é um momento da vida de extrema plasticidade neuronal e de abertura a inscrições psíquicas ao longo do qual é possível retomar o rumo do desenvolvimento quando este apresenta obstáculos. Mas, para isso, é preciso sustentar experiências estruturantes por meio do brincar; da curiosidade; da exploração psicomotora; da fala articulada em diálogos em que se conversa do que importa e interessa; dos hábitos da vida diária compartilhados com os seres queridos que fazem dos pequenos acontecimentos do cotidiano atos de valor simbólico, estando disponíveis ao encontro para além das telas e das técnicas que pretendem reduzir a complexidade do ato educativo e da transmissão de parâmetros éticos entre gerações a adequações comportamentais.

Por isso é urgente interrogar e elucidar como chegamos a índices tão alarmantes de diagnósticos de TEA, TOD, TDAH e TDM (transtornos do espectro do autismo; opositor desafiador; de déficit de atenção e hiperatividade; e depressão), em um aprisionamento das infâncias nas grades nosográficas de transtornos mentais a partir dos quais se estende um trilho que conduz à medicalização e à aplicação de métodos para moldar o comportamento infantil através da submissão a comandos inculcados através de reforços por prêmios e castigos:

1º – A partir do momento em que o manual de doença mental DSM-5 propõe transtornos estabelecidos como grandes espectros, reduz-se uma grande diversidade de sofrimentos psíquicos a praticamente três ou quatro quadros ampliados e generalizados. Desse modo, mudou a régua com a qual se avalia, e muitos mais passam a caber dentro dela.

2º – A infância passou a ser escrutinada a partir de diagnósticos por checklists desde os quais se recortam pequenos fragmentos de comportamento apagando-se o contexto no qual a criança os produz, tanto do ambiente quanto da relação com os outros, atribuindo a eles um suposto valor patognomônico (como se houvesse comportamentos univocamente ligados a um único diagnóstico) que de fato não possuem.

3º – Tais instrumentos de checklists, sob o pretexto de acelerar a diagnose, incorrem em atropelos reducionistas que desconsideram a complexidade polissêmica da produção humana, ou seja, suas diferentes significações a depender do contexto e, desse modo, em lugar de fazer detecção precoce de sofrimento psíquico, produzem precipitações diagnósticas, pois realizam o que vão procurar, sendo indutivos de patologização.

4º - Pais preocupados pelos desencontros que corriqueira ou inevitavelmente surgem na relação e cuidado com os filhos/as têm as suas dúvidas e inquietações capturadas através da sobredeterminação algorítmica em checklist desde as quais se vêem impelidos a testar o filho/a, fixando seu olhar na busca de supostos marcadores patológicos, e assim desorganizando o exercício das funções materna e paterna. Sob a égide da patologia que se interpõe no laço, são invadidos pela angústia e pelo temor da gravidade que os lança a uma condição de exceção e solidão, em lugar de poder, junto a profissionais que cuidem efetivamente da infância, elaborar as dificuldades e as preocupações para construir saídas sem perder de vista o mais importante: a potência da criança, a aposta na mobilidade possível de suas produções e a reconstrução de um saber-fazer como pais junto ao filho/a.

5º- Alguns diagnósticos se tornam prevalentes, passando a ficar associados a benefícios assistenciais, enquanto outros, igualmente difíceis de atravessar, não. Isso produz dentro das próprias redes de encaminhamento/matriciamento um “inchaço” de algumas categorias diagnósticas para tentar amortecer, sem conseguir resolver, uma profunda injustiça social quando pais que não têm como trabalhar e cuidar do filho/a com dificuldades passam a precisar extrair do diagnóstico um mínimo sustento. Desse modo, a prevalência de um diagnóstico é retroalimentada.

6º - A isso se segue a crescente implantação de centros de atendimento dedicados a “transtornos” específicos e não mais à infância, segregando por patologia na área da saúde, na contramão da longa caminhada de luta pela inclusão na educação que produziu consequências extremamente favorecedoras do desenvolvimento. Tal investimento em fixações patologizantes e desinvestimento na mobilidade própria da infância tornam-se ainda mais devastadores ao se deixar pequenas crianças e seus familiares expostos à égide da patologia, que incide como uma profecia autorrealizável ameaçadora do presente e do futuro, enquanto, desde o início da vida, se fica em filas à espera de tratamento enquanto se põe a perder a potência de um tempo decisivo para intervir com a estruturação de toda e qualquer criança.

Não se deve negar um diagnóstico. Mas ele não pode assumir uma condição aniquiladora da mobilidade própria da infância ao longo da qual estar não equivale a ser. Menos ainda quando se trata de bebês, que, por estar nos primeiros tempos de constituição psíquica, geralmente apresentam sinais de sofrimento que tendem a ser pouco específicos por patologia, e por isso devem ser tratados desde uma detecção que considere o que não vai bem antes mesmo de que a dificuldade apresentada assuma a forma de uma patologia específica. Isso é fazer prevenção primária e secundária em saúde mental atrelada ao desenvolvimento.

Estamos testemunhando um grave problema de saúde coletiva ameaçador do porvir dos que estão na infância e que se verá ainda mais agravado se continuarmos a cair na armadilha de que seria preciso fechar diagnósticos para poder cuidar de um bebê e seus pais em sofrimento psíquico ou para ter acesso a direitos básicos; de que seria preciso segregar por diagnóstico para tratar; ou de que apenas instrumentos de rastreamento desenhados para a patologia e configurados como técnicas padronizadas, tantas vezes importadas e que cobram royaltes, desconhecendo a realidade dos territórios em que são aplicadas, seriam as únicas com eficácia. O conhecimento científico não se reduz a padronizações estatísticas de procedimentos, principalmente quando o que está em jogo é a sustentação de um marco de criação e transmissão na estruturação psíquica entre gerações.

Assim como a neurologia e a genética, junto a outras áreas da pesquisa em medicina, avançam e trazem contribuições aos tratamentos da infância, desmentindo panaceias e causalidades reducionistas e negacionistas, a clínica da estimulação precoce perpassada pela psicanálise, ao estudar e intervir profundamente com a estruturação psíquica e sua interdependência das relações culturais, sociais, parentais, estudantis, fraternas, traz importantíssimas contribuições ao cuidado amplo e preventivo da infância, bem como à sua terapêutica quando surgem dificuldades.

No âmbito do cuidado preventivo de todos os bebês, tal conhecimento permitiu desenvolver o instrumento de detecção IRDI, que torna transmissíveis indicadores do que é preciso cuidar para favorecer a estruturação no laço pais-bebês, bem como para detectar o que não vai bem em lugar de fixar marcadores psicopatológicos. Assim, o conhecimento sobre a saúde mental da primeiríssima infância pode contribuir intersetorialmente com a saúde primária, a educação e a assistência para gerar saúde em lugar de realizar adoecimentos.

No âmbito da intervenção terapêutica, quando há dificuldades que fazem obstáculo ao desenvolvimento, a clínica da estimulação precoce perpassada pela psicanálise sustenta desafios desde os quais um bebê pode vir a realizar aquisições de linguagem, hábitos, psicomotricidade e aprendizagem desde um marco no qual o bebê possa vir a ter a autoria da produção colocada em cena em nome de seu desejo. Isso é muito diferente de submeter bebês e pequenas crianças a técnicas de treinamento que lhes inculcam performances dissociadas dos seus interesses e dos acontecimentos de sua vida.

Por isso, tanto nos tratamentos daqueles que estão em dificuldades quanto nos cuidados preventivos de todos os bebês e crianças, é central sustentar produções que são imprescindíveis na aposta da estruturação:

- o brincar como uma produção estruturante desde a qual a criança elabora o que lhe acontece e produz suas respostas criativas. Nos primeiros tempos da vida, o brincar se sustenta de modo compartilhado com os cuidadores por meio dos jogos constituintes do sujeito, desde os quais se instaura o prazer compartilhado e se aprende por identificação.

- o falar, conversar, contar histórias e dialogar sobre os acontecimentos da vida do dia a dia e dos grandes acontecimentos da história social e familiar que atravessam os cuidados cotidianos, por meio dos quais vamos significando e elaborando como experiências o que nos acontece e produzindo saídas diante dos impasses do viver. Com bebês, mesmo em um tempo em que eles ainda não falam, tomar seu olhar, vocalizações, gestualidade e ações como um dizer é decisivo para que sejam incluídos em uma estrutura de diálogo desde a qual um dia poderão vir a tomar a palavra em nome próprio e não simplesmente repetir.

- os hábitos de alimentação, sono, higiene e festividades que permitem desfrutar da vida e também produzir interdições organizadoras, articulando o prazer a ideais culturais, desde os quais cada um desses pequenos atos da vida diária assumem a grandeza de seu valor simbólico, em lugar de esvaziar esse convívio pelo uso excessivo de eletrônicos - empobrecendo as identificações e fragilizando os laços de pertença - ou propor técnicas com prêmios e castigos que só sublinham a importância do ‘ter’ objetos e não do ‘ser’ a partir de realizações das quais uma criança possa se orgulhar, abrindo mão de satisfações imediatas em nome de valores culturais.

Não nascemos estruturados nem orgânica nem psiquicamente e o que se vive na infância é decisivo para quem alguém irá se tornar. Por isso é preciso parar de escrutinar a infância desde a lente da psicopatologia e começar a cuidar dos patógenos (fatores que favorecem o adoecimento) que incidem sobre ela, como a falta de espaços públicos seguros para brincar; a falta de tempo dos cuidadores esmagados por jornadas intermináveis de trabalhos; o individualismo que isola os pais e torna solitários os cuidados; a ilusão de que o excesso de objetos traria satisfação, quando o brincar não está no brinquedo em si e sim na fantasia que a criança pode desdobrar ativamente com ele; a desvalorização salarial e de formação dos profissionais que intervêm na educação, principalmente com a primeira infância, quando, na contemporaneidade, estes frequentemente são os adultos que mais tempo passam com as pequenas crianças; o excesso de eletrônicos que aplacam as demandas pela fala e deslocamentos espaciais das crianças, tornando-as passivas em lugar de inventivas e silenciando os adultos diante de transmissões que só eles poderiam fazer, expondo a infância ao anonimato e a enxurrada sensorial fragmentária da tela de cristal líquido.

Em países do terceiro mundo, muitos estão privados de direitos básicos, como segurança alimentar ou saneamento. As dificuldades econômicas e a falta de trabalho causam migrações e aculturações que destituem costumes, línguas e saberes de origem. Nesse contexto, cuidar da saúde mental materno-infantil não é algo menor. É parte imprescindível dos cuidados, porque um bebê ou pequena criança que está em sofrimento psíquico acabará tendo consequências em seu desenvolvimento.

Cuidar do desenvolvimento de forma atrelada à estruturação psíquica desde a atenção básica e educação infantil custa menos do que psicopatologizar, não só aos cofres públicos espoliados em nome de interesses que geram lucro a partir de diagnósticos precipitados que lançam a uma exceção que segrega desde a mais tenra infância em lugar de favorecer a entrada no laço social, mas principalmente custará menos para os bebês, pequenas crianças e seus familiares que têm tantas vezes expropriada a possibilidade de decidir a significância inventiva de seu viver quando submetidos a instruções de técnicas padronizadas.

Intervir a tempo, zelando pela dimensão da infância acima da de psicopatologia, pode mudar o rumo da história, não só de cada pequeno que está em sofrimento e de seus familiares, mas de todo o nosso devir enquanto sociedade. Os caminhos aí se dividem entre o projeto de fazer da próxima geração uma horda submetida a comandos, adestrada por técnicas e apassivada diante das telas, e os que, na contramão desse projeto esmagador, seguirão sustentando a condição de bebês e crianças como sujeitos capazes de ousar a subversão do desejo porque autorizados a produzir saídas criativas do viver junto a aqueles que deles cuidam.

*A REDE-BEBÊ: 1ª infância, desenvolvimento e transdisciplina foi fundada em 2018 de forma colaborativa e sem fins lucrativos. É composta por mais de 480 profissionais da saúde, educação e assistência que intervêm com a infância em diferentes territórios: especialistas em estimulação precoce, psicólogos, psicanalistas, pediatras, psiquiatras, neurologistas, pedagogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos, psicomotricistas, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos, odontologistas, professores de educação física, assistentes sociais, entre outros. Saiba mais em: www.redebebe.com


Além dos profissionais propositores que compõem a REDE-BEBÊ, este manifesto é apoiado pelas seguintes instituições:


1- INSTITUTO TRAVESSIAS DA INFÂNCIA - Centro de Estudos Lydia Coriat, São Paulo/SP

2- FEPI - Fundación para Estudio de los problemas de la Infancia: Centro Lydia Coriat/ Buenos Aires, Argentina.

3- ESPAÇO ESCUTA- Centro Interdisciplinar dos Problemas do Desenvolvimento, Londrina/PR

4- ESTRUTURAR Clínica Integrada, Cuiabá/MT

5- NÓS - Grupo de Estudos e Transmissão em Psicanálise, Goiânia/GO;

6- BAOBÁ - Clínica de Estimulação Precoce e Tratamento dos Problemas do desenvolvimento, Carazinho/RS

7- NÚCLEO DE PSICANÁLISE INFANTIL MATO-GROSSENSE, Cuiabá/MT

8- INSTITUTO PIPA: a causa da criança, Criciúma/SC

9- ASSOCIAÇÃO LACANIANA DE BRASÍLIA, Brasília/DF

10- PROJETO SOCIAL ESPAÇO-VIVO, Rio de Janeiro/RJ

11- ESCUTAR, Salvador/BA

12- RAIA- rede de atenção às infâncias e adolescências, Goiânia/GO

13- NPMBEBES E CASULO BEBÊ, Manaus/AM

14- NUCLEO CRIAÇÃO, São Paulo/SP

15- INTERAGE, Santa Maria/RS

16- LEPEC – Laboratório de Estudos em Psicomotricidade, Escritos e Criações, Fortaleza/CE

17- IPREDE – Instituto da Primeira Infância, Fortaleza/CE

18- AMPSC- Associação Movimento Psicanalítico Sul Catarinense, Tubarão/SC

19- ARGOS- Centro de Psicomotricidade Relacional e Terapias Integradas, Recife/PE

20- NEPE – Núcleo de Estudos em Psicanálise e Educação, Poços de Caldas/MG

21- CIAMM – Centro da Infância e adolescência Maud Manonni, São Luís do Maranhão/MA

22- NINAR – Núcleo de Estudos Psicanalíticos, Recife/PE

23- Corpo de Professores da PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA DA PUC-SP, São Paulo/SP

24- HUMANIDADE - Acompanhamento Terapêutico, São Paulo/SP

25- BIBLIOTECA FREUDIANA DE CURITIBA, Curitiba/PR

26- CAIS – Centro de Atendimento e Inclusão Social, Contagem/MG.

27- RIDIT- Red Intersectorial del Desarrollo Infantil Temprano, Argentina

28- DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE DA CRIANÇA - INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE, São Paulo/SP

29- APC – Associação Psicanalítica de Curitiba, Curitiba/PR

30- CEP – Centro de Estudos Psicanalíticos, São Paulo/SP

 
 
 

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